Artigo publicado na Revista de Doutrina Jurídica - RDJ, TJDFT, v. 112 (2021): Publicação Contínua, Publicado: 2021-06-30 DOI: https://doi.org/10.22477/rdj.v112i00
O presente estudo, no campo do direito processual penal em articulação com a filosofia, analisa os reflexos do romance Der Process, de Franz Kafka, no procedimento criminal. Utiliza, na leitura e na interpretação do texto, o método fenomenológico, com auxílio de outras disciplinas, principalmente o direito comparado e a história do direito. O percurso narrativo trata dos principais atores processuais em sentido estrito e aborda, no espectro amplo, os efeitos sociais do processo. Kafka descreve, de forma universal e atemporal, situações absurdas, em que eleva, por meio da literatura, a discussão ao patamar filosófico. A vivência pela personagem principal de deturpações e mazelas procedimentais de consequências trágicas expõe a fragilidade desse instrumento, carente de atividade humana para sua concretização. Fica demonstrado, ao final, que a maior das garantias consiste no fiel cumprimento do procedimento previsto. Em conclusão, com o objetivo de manter a paz social, o homem, diante de conflito de interesses, criou o processo como solução, cabendo à sociedade discutir incessantemente o sistema jurídico-processual e zelar pelo processo justo.»
Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=3VuxIHfl2ao 1:29
Webinar de Lançamento da Revista de Doutrina Jurídica do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, Volume 112, com o escopo de reconhecer a produção técnica e científica de magistrados e demais profissionais ligados às atividades jurídicas, inclusive as de apoio, com vistas a estimular o debate sobre o aperfeiçoamento dos requisitos de um processo jurisdicional justo e sobre a importância da cooperação/colaboração entre as partes e os julgadores para chegar à decisão judicial mais justa possível.
O evento contou com a explanação dos Doutores: Juíza Gabriela Jardon Guimarães de Faria, Advogado Marcelo Bezerra Ribeiro e Promotora de Justiça Militar Adriana Santos.
DER PROCESS
O romance ‘O Processo’ de Franz Kafka contém uma mensagem, aparentemente paradoxal, apesar de retratada a injustiça por meio do processo, há o reconhecimento do valor desse como forma de solução de conflitos na sociedade moderna. O desenvolvimento da narrativa que culmina com os pensamentos da personagem no capítulo 'Fim' afirmam o valor do instituto. Uma leitura de O Processo, com suporte jurídico, autoriza uma interpretação que desvela múltiplos sentidos.
O livro possui pontos de abordagem do sistema judiciário, que devidamente articulados pelo autor levam o leitor a um estado de confusão, os quais devem ser individualizados para a compreensão do texto e sua mensagem.
1º - a escolha do crime de denunciação caluniosa, ponto fraco do conjunto do direito e processo penal, eis que um inocente pode ser preso e até condenado, se o sistema não for sólido e eficiente para detectar o erro.
2º - a existência de um estado que orbita dentro do estado. K. não estava sendo processado pela Justiça ordinária comum, mas vítima de uma “organização” interna, que se aproveitava dos recursos e instalações da Justiça.
3º - o método da organização implicava na destruição da vida financeira dos acusados, tendo como consequência a destruição da higidez psicológica, vida profissional e familiar daqueles.
4º - No romance a defesa não era suficiente nem eficiente no patrocínio dos acusados, que percebiam a necessidade de contratar cada vez mais defensores, eis que se sentiam desprotegidos. 5º - Kafka no capítulo 'O promotor público', deixa claro que a Justiça era integrada por juízes, promotores, advogados e servidores íntegros e dedicados à causa, com isso, a organização descrita ao longo do romance caracterizava um desvirtuamento do sistema, uma pequena parcela daquele universo.
6º - Extrai-se de diversos trechos do romance que a sociedade deve pensar permanentemente no aprimoramento do sistema judiciário, pois quem está dentro do sistema não tem liberdade para a efetivação das mudanças necessárias.
A vulnerabilidade do sistema de Justiça em face da potência destrutiva do crime de denunciação caluniosa e do consequente erro judiciário.
Observe-se que a grafia utilizada para calúnia também não é a de sua época e, hoje sequer consta dos dicionários, atualizada para verleumden.
Kafka utilizou a grafia da lei penal austríaca da época, no artigo que tratava do crime, a indicar o aspecto técnico jurídico com que escrevera a obra.
'§ 209. Calúnia. Quem imputa a alguém um crime perante a autoridade, ou, de alguma forma, o diz responsável, a fim de que sua incriminação possa servir à instauração de um inquérito ou ainda de uma investigação contra o incriminado, é culpado pelo cometimento do crime de calúnia. '
'Jemand musste Josef K. verläumdet haben, denn ohne dass er etwas Böses getan hätte, wurde er eines Morgens verhaftet.'
Alguém tinha que ter caluniado Josef K, pois, sem que ele tenha feito algo de mau, foi, em uma manhã, preso.
Kafka trata da concretização do direito e chama a atenção para o fato de que não basta a existência de normas se a sua aplicação for deturpada, por esse motivo a escolha do “processo”. A opção por um “processo” penal se deu por envolver a liberdade e seu limite jurídico, a prisão e outras questões transversais.
A construção da narrativa por meio da supressão das garantias processuais, restando apenas a oitiva do acusado e o juiz de instrução, deveria despertar o inconformismo do leitor diante dos abusos, no entanto, esse acaba por naturalizar aquele processo, pois muitos discutem a existência de uma culpa de K. sem conclusão do procedimento e mesmo sem saber do que ele era acusado.
Como resultado, Kafka transforma cada leitor que afirma a existência da culpa da personagem em um autor de denunciação caluniosa.
Copyright © 2020-2024 derprocess.org
Todos os direitos reservados.